O busão voador

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…da experiência de viajar na Ryanair, a maior companhia aérea de baixo custo da Europa…

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No caótico trânsito de Dublin, uma luxuosa Mercedes S500 trafega pelas faixas de táxi. O carro possui o luminoso no teto, devidamente registrado com a licença número MG99 para exercício da profissão. Seu motorista trabalha no ramo de transporte de passageiros, levando pra lá e pra cá mais de 8 milhões de pessoas por mês, a um custo médio de 65 euros por viagem.

Apesar do baixíssimo custo médio por pessoa, Michael O’Leary não está no ramo do transporte terrestre, mas sim do transporte aéreo. Ele é CEO da Ryanair, a maior empresa aérea de baixo custo da Europa, percorrendo rotas entre 200 aeroportos em 31 países, incluindo norte da África (Marrocos) e Oriente Médio (Chipre e Israel). A empresa nasceu em 1985, operando inicialmente uma única rota, de Waterford na Irlanda a Gatwick, em Londres. Desde seu surgimento, ela trabalha lotando as cabines de passageiros da forma como pode. No começo, as aeronaves eram tão apertadas que eles apenas recrutavam comissárias que fossem menores do que 1,58m. Michael, CEO da companhia desde 1994, é uma figura caricaturesca, polêmica, popular por seu linguajar desbocado, sua arrogância e por ser um dos mais bem sucedidos empresários da Irlanda, com uma fortuna estimada em mais de 750 milhões de euros.

A empresa admitiu publicamente o uso do táxi para transporte pessoal: “A última vez que eu verifiquei, esta era uma república democrática. Contanto que eu pague meus impostos, eu posso fazer com meu dinheiro dinheiro o que eu quiser.”[1], disse Michael, único dono da O’Leary Cabs, uma companhia de táxi que só possui um carro registrado, tudo para que o empresário possa usar as faixas exclusivas de táxi irlandesas e prevenir que ele fique preso em engarrafamentos. Apesar de não ser ilegal possuir uma companhia de táxi só para fugir do trânsito, Michael pode ser obrigado a atender passageiros se for chamado enquanto estiver andando nas faixas exclusivas. No carro há até um taxímetro e ele pode emitir recibos. “Eu transportaria alegremente pessoas em Dublin. E faria um preço bem mais barato.”

Se seguisse a linha de funcionamento da companhia área, provavelmente o táxi de Michael realmente teria um preço mais barato. Mas também cobraria taxas extras para colocar bagagem no porta-malas, ligar o rádio, usar o ar-condicionado ou abaixar o vidro.

É assim que a Ryanair opera, vendendo qualquer coisa que possa ser cobrada separadamente de uma viagem de avião simples. O cliente paga mais caro se quiser despachar mala, escolher assento, embarque prioritário ou até mesmo para fazer o check-in no aeroporto.

Michael O’Leary

Check-in
Promoções que oferecem viagens a até 10€ são bem comuns no site da companhia. A internet é responsável por 99% das vendas de passagens. O’Leary despreza agentes de viagem e já se posicionou duramente contra eles: “Dane-se os agentes de viagem. Levem os malditos pra fora e atirem neles. O que eles fizeram para os passageiros no decorrer dos anos?”[2]

Realmente a web trouxe uma visível e incrível revolução na forma como as empresas aéreas operam nas últimas décadas. Stelios Haji-Iannou, CEO da EasyJet, uma outra empresa aérea de baixo custo européia, uma vez declarou que “A internet provavelmente teve mais impacto na forma como as pessoas viajam do que a turbina de avião”[3]. Na Ryanair o check-in online é fortemente incentivado através da inclusão de uma taxa de 50€ para o passageiro que for fazer o procedimento no balcão do aeroporto. A idéia é cortar ao máximo os gastos da empresa, seja economizando com gastos de funcionários ou impressão de tickets. Passageiros que esquecem de imprimir os próprios tickets também têm que pagar pelo serviço: “Nós achamos que eles deviam pagar ainda mais por serem tão estúpidos”, diz O’Leary[4]. Apesar do check-in online ser um processo adotado pela maioria das companhias aéreas hoje em dia, é uma prática que ainda não faz muito sentido: se o objetivo do check-in é comunicar à companhia que você chegou e está pronto para viajar, qual o propósito de fazê-lo de casa um dia antes?

Taxas extras aparecem no processo da viagem aos montes: reserva de assentos, embarque prioritário, despacho de bagagens, troca de vôos… trocar o nome do passageiro pode custar até 100€, freqüentemente um valor muito maior do que o custo de uma nova passagem. Em 2003, a empresa foi levada a júri por cobrar uma taxa de uso de cadeira de rodas: Bob Ross, um homem com paralisia cerebral e artrite teve que pagar um adicional de 36£ para poder usar cadeira de rodas no embarque e desembarque de um vôo da Ryanair que custou 20£.[5]

Impostos e taxas aeroportuárias também eram cobrados de forma separada do valor da passagem – uma artimanha marota para a viagem parecer mais barata do que seu custo final real. Uma vez, após um atentado que matou dois turistas europeus em Marrakech em 2011, comprei uma passagem para o Marrocos ao custo de 1€. As taxas aeroportuárias não estavam inclusas e custaram mais €6.75. Um valor abusivo se considerarmos que é o equivalente a 675% do valor da passagem. Tecnicamente, a cobrança de impostos e taxas aeroportuárias não deveria trazer lucro à Ryanair. Sendo, porém, uma cobrança feita no momento da compra, cada vez que um passageiro não voa com a companhia, esse valor entra para os cofres da empresa como lucro. O preço da passagem é completamente não-reembolsável, como a empresa faz questão de anunciar diversas vezes durante o processo de compra. Entretanto, se o passageiro quiser obter o reembolso dessas taxas em um vôo não usado, basta entrar em contato com a companhia e pagar a taxa administrativa de 20€. A resposta padrão da empresa é que a taxa administrativa é maior do que o valor a ser reembolsado, então eles pouparão o cliente desse embaraço e todos fingem que nada aconteceu.

O despacho de bagagens também é cobrado. Ao contrário do que acontece no Brasil, onde as regras da ANAC obrigam que as empresas aéreas a permitir o check-in de uma mala de até 23kg por passageiro, na Europa (e Estados Unidos) essa imposição não existe. Isso permite às companhias a cobrança de passagens a preços extremamente acessíveis, com taxas extras para os passageiros que levam consigo bagagem a ser despachada. A ANAC têm trabalhado ultimamente para alterar essas regras, o que possibilitaria o barateamento das passagens e permitiria a operação de companhias aéreas de baixo custo no país.

Para evitar essas cobranças extras, a maioria dos passageiros da Ryanair sequer viaja com outra bagagem a não ser a mala de mão. O preço acessível e a ampla oferta de destinos tornaram as viagens pela Europa uma opção de passeio de final de semana. “Nós somos totalmente a favor das taxas e o preço para o check-in e despacho de bagagem vai subir. E vamos continuar subindo até conseguirmos persuadir 40% a 50% dos passageiros que viajam conosco por um ou dois dias para carregar apenas uma bagagem de mão.”, disse O’Leary um tempo atrás. “Eu posso viajar por duas semanas só com uma mochila. Ao invés de levar seu secador de cabelo, porque não comprar um quando chegar lá?”[6].

A política de bagagem de mão da Ryanair ficou famosa por ser radical. Todas as malas de cabine eram pesadas e medidas e as que não se adequavam precisamente às regras eram taxadas. “Éramos nós que dizíamos aos nossos empregados que medissem a mala de todos até o último milímetro”, disse Michael mais recentemente, no final de 2015, quando admitiu a prática de manter um controle obsessivo pelas regras de bagagem. Mas ele acrescentou que o propósito nunca foi ganhar dinheiro com as taxas, mas sim diminuir o número de bagagens despachadas – meta atingida além do planejado: hoje cerca de 80% dos passageiros viajam apenas com a bagagem de mão[7].

A cobrança pelas malas despachadas e a medição exigente e precisa das bagagens acabaram criando um surpreendente incômodo para passageiros mais desavisados. Se, no momento do embarque, a mala for maior do que o permitido, ela não pode embarcar ou o passageiro se vê forçado a pagar por despachá-la. Se tornou comum ver pessoas esvaziando suas mochilas em saguões de aeroportos pela Europa e vestindo diversas camadas de roupas para tentar esvaziar o máximo possível suas malas.

Como fez James McElvar, integrante de uma boy band escocesa, em um vôo da EasyJet (que aplica práticas semelhantes às da Ryanair). Em julho de 2015, o escocês desmaiou em um vôo entre Londres e Glasgow por conta de exaustão devido ao calor: como sua mala estava maior do que o permitido ele simplesmente vestiu doze camadas de roupas antes de embarcar para evitar pagar taxas extras.[8]

Embarque
A Ryanair opera com 370 aeronaves Boeing 737-800. O CEO da companhia é fã declarado da fabricante americana de aviões – o que não o impede de chorar agressivamente por descontos durante compra de grandes lotes de aeronaves. Em comparação com a fabricante européia airbus, por exemplo, Michael destaca que a aeronave equivalente (o A320) possui 180 assentos, contra 189 do Boeing 737-800. “E, quando você voa 8 vezes por dia, 365 dias por ano, esses nove assentos são uma imensa vantagem competitiva para a Boeing”, diz ele.

Por fora, as aeronaves são brancas e azuis, com o logo da companhia pintado na cauda. O logo é uma figura humanesca alada, uma imagem que remete a uma harpa – símbolo tão característico da Irlanda que aparece nas principais representações culturais do país: no seu brasão e nos copos de Guinness. Em 2003, a empresa alterou levemente o desenho para adicionar seios mais fartos à figura alada, num caso espetacular de implante de silicone em um logo. “Ela parecia um cara com asas. Alguém disse que devíamos dar a ela peitos maiores. Então nós demos. Alguma entidade disse que estávamos diminuindo mulheres. Foda-se Ela agora tem peitos maiores e a história ganhou duas meias páginas no the Sun, que custam £25,000 cada”[9].

O interior das aeronaves é de um mal gosto tocante, como se tivesse sido decorado por um torcedor do Boca Juniors fanático e cego: tons fortes de amarelo e azul se alternam em todos os lugares. O bagageiro, amarelo brilhante, é forrado por anúncios publicitários – quase todos da própria Ryanair, anunciando outros destinos de viagem com valores de passagem pífios (sempre “a partir de”) e propagandas dos itens vendidos no serviço de bordo (comidas, bebidas, produtos de duty free).

As poltronas parecem especialmente desenhadas para anões sem pernas. A primeira fileira e os assentos posicionados na saída de emergência (com mais espaço para seus joelhos, de forma que neles não é preciso viajar em posição fetal) são destinados àqueles que decidirem pagar a mais para reservar esses assentos. As poltronas não reclinam e as persianas das janelas não existem, economizando alguns milhões para a companhia em manutenção e engrenagens. Também não há bolsas nas poltronas, sendo um item a menos para a equipe de bordo se preocupar em limpar. As instruções de segurança, ao invés de ficarem em um cartão, estão coladas da poltrona da frente, estrategicamente posicionadas na fuça do passageiro, sendo a única forma de entretenimento de bordo existente.

Não há separação de classes. Todos os passageiros pertencem à classe animal. É possível, porém pagar a mais também para ter um embarque preferencial e entrar com antecedência na aeronave (porém, pelo que eu sei, entrar antes no avião não fará o cidadão chegar mais cedo no destino).

Geralmente os passageiros esperam a aeronave em uma sala de embarque pequena demais para a quantidade de pessoas que comporta. Por economia, a Ryanair não faz uso das pontes de embarque (os chamados fingers), que conectam a aeronave direto com os terminais do aeroporto. Assim, quando o avião está liberado, todos andam pela pista como crianças em uma excursão escolar e embarcam (e desembarcam) pela escada – esteja chovendo, nevando ou no meio de um tornado tropical.

Tudo deve funcionar da forma mais eficiente possível. O tempo é apertado: a partir do momento que o avião finalmente estaciona, são menos de sete minutos até que todos tenham desembarcado. São cerca de dez minutos em solo até a equipe iniciar o processo de embarque para o vôo de volta. São aproximadamente outros dez minutos para que todos embarquem e o avião esteja partindo novamente.

A companhia atualmente trabalha com grande parte dos seus vôos completamente lotados – a média de ocupação das aeronaves é de 95%. A equipe de bordo tenta acomodar a todos com uma rapidez notável, sem muito tempo para frivolidades como distribuir sorrisos ou desejar bom dias. Os bagageiros geralmente lotam e não há espaço para todas as malas, então algumas podem ser obrigadas a ser emergencialmente despachadas (livre de custos se o passageiro conseguiu chegar até aqui com ela).

Os assentos são distribuídos automaticamente, provavelmente baseados em um algoritmo inteligente o suficiente para deixar todos completamente insatisfeitos. A não ser que reservem especificamente seus lugares, grupos e casais podem ser colocados separados.

Finalmente depois de menos de 30 minutos em solo, o avião está voando novamente.

Parte da estratégia de barateamento de custos da Ryanair se baseia em manter as aeronaves em serviço o máximo de tempo possível. Um avião no chão não está gerando dinheiro, então os embarques e desembarques são otimizados de forma a colocar a máquina nos céus rapidamente. Não apenas isso, mas os horários de vôo são definidos evitando que os aviões passem a noite fora de aeroportos-base, evitando taxas aeroportuárias de estacionamento e, principalmente, tornando desnecessário à empresa pagar a acomodação de sua equipe de bordo dormindo fora de casa.

Voando
Assim que atinge altura suficiente para que seja impossível aos passageiros fugirem, os comissários de vôo começa seu trabalho de assediar agressivamente as entediadas vítimas. O entretenimento de bordo é nulo: não há filmes em telas individuais e nem coletivas. As revistas dos assentos basicamente tentam te vender novos serviços e a ficha de procedimentos de emergência é tediosa. A Ryanair se aproveita desse público cativo e quase sem distrações para vender.

O serviço de bordo parece ser a principal fonte de renda da companhia. Evidentemente, nada é gratuito: até a água que o passageiro porventura solicitar ao comissário será cobrada. Repetidamente durante o vôo, o serviço é anunciado. Comissários de bordo não estão na aeronave para atender o passageiro, mas sim para obter o máximo possível de vendas no período que a aeronave estiver nos céus. Em caso de emergência, é um grupo de vendedores que são os responsáveis pela segurança dos passageiros. Não me surpreenderia se em caso de despressurização da cabine máscaras de oxigênio fossem vendidas por 5€. “Nós vendemos 15% de nossos lugares ano passado sem lucro.”, diz Michael O’Leary, “Se não déssemos eles de graça, eles estariam vazios, mas dessa forma, nós temos a chance de vender a eles um aluguel de carros, um sanduíche ou um copo de chá. Nós trabalhamos no sistema de negócio dos cinemas multiplex, que tiram a maior parte de sua receita da venda de pipoca, refrigerante e chocolates, não dos tickets. Nossa extrema ambição é chegar a um estágio aonde a passagem é gratuita.”

Dependendo da distância a ser percorrida, o sentimento que se têm é de uma feira: numa viagem de 3 horas, os comissários inicialmente anunciam o serviço de comida por duas vezes, depois lembram que é possível comprar perfumes, brinquedos, cartões telefônicos internacionais e outros itens a bordo, relembram a todos que ainda falta uma hora e vinte para a aterrissagem, então dá tempo de pedir um lanche. Eles também vendem raspadinhas, num esquema que pode premiar os passageiros com diversos carros por ano e milhões de euros. O próprio Michael já declarou todo seu apoio incondicional aos jogos de azar nos céus: “Francamente, muitas pessoas ficam entediadas nos vôos. Acreditamos que elas têm uma propensão alta de se envolverem em todo tipo de jogos. Talvez no futuro nós faremos nossos pilotos anunciarem números de bingo.”

É difícil dormir nos vôos com a equipe de bordo constantemente anunciando uma nova oferta a todo momento. Tudo é sempre apresentado com um repleto uso de adjetivos enaltecedores (deliciosas tortas, cervejas geladinhas, croissants quentinhos, espetaculares produtos, maravilhoso sistema de loteria).

como todo irlandês, Michael O’Leary gosta de leprechauns.

Adjetivos que não representam necessariamente a qualidade do produto oferecido. Em um vôo para Porto, uma passageira à minha frente pediu uma pequena garrafa de vinho tinto (6€ por 100ml). Ela pede para ver a marca e pergunta sobre o vinho para a aeromoça, que simplesmente responde “é o pior vinho português que eu já provei na vida”.

Principalmente se tratando de Europa, álcool é abundantemente vendido, como se fosse camiseta falsa da seleção em protesto contra a corrupção. Se as vendas de bebidas estiverem baixas, o piloto pode simular uma falsa-turbulência – isso sempre eleva as vendas[10].

Os banheiros, pelo menos, ainda são gratuitos. Não seriam se dependessem de O’Leary: “Uma coisa que estivemos pensando é colocar um slot de moedas na porta dos banheiro. ‘Pay-per-pee’. Se alguém quiser pagar £5 para ir ao banheiro, eu mesmo carregaria a pessoa. Eu limparia a sua bunda por uma nota de cinco libras”. Apesar da disposição em fazer trabalhos sujos em troca de um punhado de pounds, Mike defende que a motivação não é fazer dinheiro direto das privadas: “Se você se livrar de dois banheiros em uma aeronave, há espaço para mais seis poltronas”, e acrescentou que “nossos vôos pela Europa tem uma duração média de apenas uma hora. Para que raios você precisa de três banheiros em uma aeronave?”[11].

Quem certamente precisa dos banheiros é a tripulação, já que é extremamente difícil que eles deixem a aeronave. Fui testemunha de um caso peculiar em um vôo para Madrid: em um dia limpo, o vôo seguia numa tranqüilidade digna de um Tesla em uma autobahn. Subitamente acenderam-se as luzes do cinto de segurança e o piloto solicitou que os passageiros retornassem aos seus lugares. Uma aeromoça cruzou o avião, e entrou na cabine do piloto. Alguns segundos depois, o piloto sai e vai ao banheiro (após um acidente com a German Wings, em 2015, aonde o co-piloto aproveitou uma saída semelhante para se trancar na cabine e atirar o avião contra uma montanha na França matando a si próprio e a todos os ocupantes, não é permitido que uma pessoa fique sozinha na cabine de comando). Alguns minutos depois, o piloto sai do banheiro e volta à cabine. As luzes do cinto de segurança se apagam. Acender o aviso de turbulência para o piloto ir trocar águas não foi um caso isolado de meu vôo: é um procedimento padrão para essa situação.

É possível relevar, se imaginarmos toda a dificuldade que os funcionários da Ryanair enfrentam. “As pessoas me perguntam como a gente consegue ter tarifas tão baixas. Eu digo a elas que nossos pilotos trabalham de graça”, diz Michael (sempre ele). Apesar do sarcasmo, há diversas reclamações anônimas de empregados da Ryanair sobre o trabalho na companhia. Os comissários de bordo pagam pelo próprio uniforme, comida e até treinamento. Além disso, eles só recebem pelas horas que permanecem no ar: briefings de embarque, reuniões de equipe e intervalos entre pousos e decolagens não são pagas.[12]

A julgar pelas declarações do CEO da companhia, as reclamações procedem: “Estudantes de MBA vêm com ‘Meus funcionários são meu ativo mais importante’. Besteira. Funcionários são seu maior custo. Nós todos empregamos bastardos preguiçosos que precisam tomar um chute no traseiro mas ninguém quer admitir.”. Quando se trata de si mesmo, porém, Michael O’Leary não disfarça a prepotência: “Eu sou o chefe mais subvalorizado e mal pago da Europa. Eu recebo cerca de 20 vezes mais do que o funcionário médio da Ryanair e eu acho que essa diferença deveria ser maior.”[16]. É um cinismo delicioso.

Pouso
Estatísticas internas da empresa apontam que em média 90% dos vôos chegam no horário previsto[13]. Esse fato costuma ser celebrado dentro das aeronaves com uma trombeta ressoando no sistema de comunicação aos passageiros.

Os números fazem sentido: a empresa é constantemente acusada de inflar o tempo de vôo para que as estatísticas de pontualidade melhorem, gambiarra aliás que ela não pratica sozinha no mundo da aviação: até o ano 2000 as empresas aéreas anunciavam que o tempo médio de um vôo entre Madrid e Barcelona seria entre cinqüenta minutos e uma hora. Hoje o tempo médio anunciado para o mesmo trajeto varia entre uma hora e dez a uma hora e vinte.[14]

Não que a felicidade de chegar no horário se estampe no rosto dos passageiros: a imensa maioria das pessoas acha desgastante o processo de viajar. De fato, ficar trancafiado em um estrutura de metal proporcionalmente do tamanho de uma lata de sardinhas com uma equipe de bordo tentando lhe vender acepipes e quinquilharias não ajuda o humor de muita gente. Talvez a razão pela qual os funcionários da Ryanair nunca estejam sorrindo seja o reflexo do comportamento de seus passageiros.

Chegada
O fim de uma viagem aérea da Ryanair quase nunca é o fim de uma viagem. A empresa tem a fama de levar os passageiros do ponto A até algum lugar remotamente próximo do ponto B. Como forma de economia, os vôos evitam chegar em aeroportos muito badalados. Para quem deseja ir para Paris, por exemplo, pode escolher entre os aeroportos no site entitulados “Paris Beauvais” ou “Paris Vatry”, dois aeroportos que nem ficam em Paris, mas em cidades próximas: do aeroporto de Beauvais é outra viagem de 110 km e de Vatry são 160km. Pior para quem quiser ir para Finlândia: o único aeroporto que a empresa opera no país é o de Tampere, a mais de 180km da capital Helsinki.

Por acaso, já estive em Tampere em uma visita a um amigo que morava em Turku (quinta maior cidade da Finlândia, a 160km do aeroporto). Tampere não é nada do que se pode esperar de um aeroporto: uma pista asfaltada para pousos e decolagens e uma pequena casinha administrativa. Pablo Escobar tinha estruturas melhores para os aviões que traficavam cocaína entre as Américas. As bagagens dos passageiros recém chegados descem por um escorregador de algum lugar ermo e se empilham no chão de uma pequena salinha. Não há taxis, ônibus, trens. A única alternativa aos passageiros que acabaram de chegar é alugar um carro ou pegar um ônibus em direção à estação de trem mais próxima.

É uma característica que se repete em todo aeroporto mais distante em que a empresa opera. Não é por acaso que os horários dos ônibus são alinhados com os horários dos vôos da companhia. Aquelas linhas existem somente porque a Ryanair vai até lá. Com custos de passagem entre 10€ e 20€, o transporte da cidade até o aeroporto pode custar mais caro do que a passagem aérea. A Ryanair deve ser na verdade uma empresa laranja para disfarçar o verdadeiro negócio da companhia: empresas de ônibus fazendo trajetos a aeroportos isolados pela Europa.

Na verdade, certos concelhos e regiões da Europa até auxiliam a companhia, com isenção de taxas e adequação de estrutura aeroportuária para que a Ryanair comece a fazer vôos até a região. Isso é uma forma de fomentar a economia local, que tende a crescer em torno de todo lugar aonde a empresa passa atuar, devido ao fluxo de turistas que ela leva.

Mas nem todas as regiões parecem gostar da chegada da companhia. Em Deauville, na França, terra de queijos, brandys e hedonismo, os aviões trouxeram o medo que a calma da cidade também fosse acabar. Um movimento contra vôos de baixo-custo surgiu e fez diversos protestos e campanhas para evitar a abertura da rota. “Eu só não quero que a região se degenere”, disse Christiane Celice, presidente do movimento. “As pessoas vêm aqui pra descansar. Vêm pelos cramemberts, pelos calvados, pelos chateaus. Elas estão procurando paz.” De acordo com o movimento, o público que viaja pela Ryanair não é o público que a cidade procurar: “Não é ser esnobe, apenas não é a clientela que a cidade quer. Nós somos particularmente contra pessoas usando camisetas e que trazem seu próprio sanduíche para comer do lado de fora do cassino”[15].

Mas nem só de miseráveis europeus vive a Ryanair. Até Tony Blair já usou a companhia para levar a família para passar férias na época em que ele era primeiro ministro. Sua assessoria declarou que a escolha da companhia foi por pura conveniência. Michael também já fez declarações a respeito do status financeiro de seus clientes: “Se nós levamos pessoas ricas nos nossos vôos? Sim. Eu peguei um vôo esta manhã e eu sou muito rico”[16].

A verdade é que preços acessíveis atraem todo tipo de público – e a Ryanair dominou a arte de cobrar barato por suas passagens aéreas. O detrimento na qualidade é uma inevitável conseqüência do barateamento da passagem, mas quem viaja com a Ryanair não espera um atendimento de qualidade tendo pago 10€ por uma passagem aérea. A empresa também não se importa especificamente com nenhum passageiro com 700 milhões de clientes em potencial.

Não é só prepotência da empresa, mas mais de seu próprio CEO: “As pessoas me vêem como um Jesus, Superman ou um odioso pedaço de merda. Eu acho que eu sou Jesus. Um profeta de seu próprio tempo.”, diz O’Leary. E ele claramente não se importa com as opiniões alheias: “Eu não me importo se ninguém gosta de mim. Eu não sou um palhaço dos céus ou um ‘aerosexual’. Eu não gosto de aviões. Eu nunca quis ser um piloto como o resto do pelotão de patetas que populam a indústria aérea. […] A indústria aérea está cheia de enrolões, mentirosos e bêbados. Nós nos sobressaímos nos três na Irlanda”[16].E, como a quinta maior empresa aérea no mundo por número de passageiros, a Ryanair realmente mostrou que sabe se sobressair.

Quem vive na Europa hoje deveria estar ciente da maravilhosa época em que estamos, com 51 países diferentes só no continente e sempre uma companhia de baixo-custo para levar até lá ao preço de um ingresso de cinema IMAX. Que época maravilhosa para se estar vivo.

+ MAIS +

Agradecimentos:

À Cássia Kaggê, minha especialista em nuvens e demais assuntos aéreos, pela prontidão de me auxiliar, tirando todo tipo de dúvidas sem julgar minha ignorância.
Ao Paul Kilduff, autor do livro Ruinair, uma das maiores fontes para este pequeno artigo. O autor respondeu prontamente meus e-mail com algumas dúvidas, de forma extremamente simpática.

Fontes:

[1]
The Secret Behind Ryanair CEO’s Private Taxi
http://www.officechai.com/stories/ryanair-ceo-taxi
“Last time I checked this was a democratic republic. As long as I pay my taxes I’m free to do with my money what I like.” –
http://www.theguardian.com/environment/2005/jun/24/theairlineindustry.travelnews

[2] “Screw the travel agents. Take the fuckers out and shoot them. What have they done for passengers over the years?” –
http://www.theguardian.com/business/shortcuts/2013/nov/08/michael-o-leary-33-daftest-quotes

[3] “The Internet has probably had a bigger effect on people’s ability to fly than the jet engine.” – http://www.newyorker.com/magazine/2006/04/24/high-and-low-3

[4] On passengers who forget to print their boarding passes: “We think they should pay €60 for being so stupid.”

[6] “People are overly obsessed with charges. They complain we are charging for check-in, but people who use web check-in and only have carry-on luggage are getting even cheaper fares. We are absolutely upfront about charges and the baggage charges and check-in charges will raise. We will keep raising them until we can persuade 40% to 50% of passengers who travel with us for one or two days to bring just one carry-on bag. I can go away for two weeks with just my overnight bag. Instead of packing a hairdryer, why not buy one when you get there?”
~ Ruinair, page 42

[5]
http://www.telegraph.co.uk/finance/2870422/Ryanair-taken-to-court-over-wheelchair-fee.html

[7] http://www.irishtimes.com/business/transport-and-tourism/o-leary-admits-he-was-last-to-get-on-board-with-charm-offensive-1.2428819

[8]
http://www.dailymail.co.uk/news/article-3155944/Boyband-singer-collapsed-heat-exhaustion-EasyJet-flight-wearing-clothes-avoid-excess-luggage-fee.html

[9]
“She looked like a bloke with wings. Somebody said we should give her bigger boobs. So we did. Some quango said we were demeaning women. Fuck off. She’s got bigger boobs and the story got two half-pages in the Sun, worth £25,000 each” ~
https://dspace.stir.ac.uk/bitstream/1893/24938/1/Final%20Submission.pdf

[10]
“If drink sales are falling off we get the pilots to engineer a bit of turbulence. That usually spikes up the drink sales.” –
http://www.ibtimes.com/mouth-ireland-hilarious-world-ryanair-ceo-michael-oleary-799629

[11]
“One thing we have looked at is maybe putting a coin slot on the toilet door, so that people might actually have to spend a pound to spend a penny in the future. Pay-per-pee. If someone wanted to pay £5 to go to the toilet, I’d carry them myself. I would wipe their bums for a fiver.”
http://www.theguardian.com/business/shortcuts/2013/nov/08/michael-o-leary-33-daftest-quotes
https://www.theguardian.com/business/2009/jun/02/ryanair-airline-oleary-toilet-charge

[12]
https://www.indeed.co.uk/cmp/Ryanair/reviews
http://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/join-ryanair-see-the-world-but-well-only-pay-you-for-nine-months-a-year-8619897.html

[13]
https://corporate.ryanair.com/about-us/punctuality/

[14]
http://www.telegraph.co.uk/travel/travel-truths/Are-airlines-exaggerating-flight-times-so-theyre-never-late/

[15]
http://www.nytimes.com/2006/11/23/world/europe/23iht-journal.3648541.html
http://www.dailymail.co.uk/travel/article-595424/Deauville-says-non-Ryanair.html

[16]
“MBA students come out with: ‘My staff is my most important asset.’ Bullshit. Staff is usually your biggest cost. We all employ some lazy bastards who needs a kick up the backside, but no one can bring themselves to admit it.”
“I’m Europe’s most underpaid and underappreciated boss. I’m paid about 20 times more than the average Ryanair employee and I think the gap should be wider.”
“Do we carry rich people on our flights? Yes, I flew on one this morning and I’m very rich.”
“The airline industry is full of bullshitters, liars and drunks. We excel at all three in Ireland.”
“People either see me as Jesus, berman or an odious little shit. I think I’m Jesus. A prophet in his own time.”
“I don’t give a shit if no one likes me. I’m not a cloud bunny or an aerosexual. I don’t like aeroplanes. I never wanted to be a pilot like those other platoons of goons who populate the airline industry.”
http://www.theguardian.com/business/shortcuts/2013/nov/08/michael-o-leary-33-daftest-quotes