Do problema de usar a Primeira Guerra como cenário para histórias heróicas…

Por algum motivo magnífico, a Primeira Guerra Mundial assumiu uma posição de maior destaque na cultura pop recente. Em meio ao seu aniversário de 100 anos, ela está mais presente por aí, como nos recém lançamentos Battlefield 1 ou no filme da Mulher Maravilha.

Gal Gadot Maravilha

É uma grande mudança em relação às últimas décadas, aonde a Segunda Grande Guerra era o cenário favorito. Pense nas maiores produções pop dos últimos tempos: os games de fps que começaram com Medal of Honor e Call of Duty, os Battlefields que começaram em 1942 – games cuja evolução foi trazer aos tempos atuais, pulando a Guerra do Vietnã e colocando em um cenário moderno. Os filmes e séries mais populares também são nela ambientados, como o Resgate do Soldado Ryan, Band of Brothers, e até os mais recentes Inglorious Bastards e Dunkirk.

As razões para esse favoritismo de priorizar a Segunda Guerra são um tanto quanto óbvias: inicialmente temos o tamanho do conflito. Nenhuma guerra jamais atingiu proporções tão globais e gigantescas como ela. Em todos os sentidos: países envolvidos, tempo de conflito, número de mortes… (ver: http://www.fallen.io/ww2/). Assim, pelo tamanho e tempo que levou, há uma infinidade incrível de histórias a serem contadas.

Mas um outro motivo ainda mais forte para histórias da Segunda Guerra serem tão populares: ela é uma guerra fácil de ser entendida. Os inimigos e as motivações são bem claros. Não importa sua nacionalidade, sua posição política, sua religião, sua cor… os inimigos da Segunda Guerra jamais podem ser outros do que os nazistas. Os heróis são bem claros e é um maniqueísmo delicioso para se contar uma história. Nem mesmo alemães são capazes de torcer contra o Capitão América quando ele sai matando nazistas.

A tendência humana é se dar muito bem com um dualismo claro. Há sempre o lado do bem e o lado do mal, o lado dos petralhas e o lado dos coxinhas, o meu time contra o deles, o meu Deus contra o resto, os heróis e os vilões, sempre bem definidos…

E há a Primeira Guerra Mundial.

O partido nazista só viria a surgir em 1920, dois anos após o final da Primeira Guerra (e fortemente em decorrência dela). Ele ganhou força como uma oposição ao Tratado de Versalhes (de 1919), um dos acordos mais injustos da história da humanidade. Basicamente o tratado jogava toda a culpa e dividendos da Grande Guerra na Alemanha.

E é aí que está o problema dessas obras: A Alemanha não foi a culpada pela Primeira Guerra.

Em 1914, a Europa era basicamente um barril de pólvora esperando uma fagulha para explodir. Séculos de guerras internas deram a cada país um considerável número de inimigos e aliados. Alemanha, França e Inglaterra tinham suas discrepâncias por umas colônias na África. A Rússia também tinha suas tretas com os reinados germânicos. Isso tudo criava um clima meio chato, como devem ficar os bastidores da continuação de Sr. e Sra. Smith.

Essa fagulha aconteceu quando o príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro foi assassinado na Sérvia. Os austro-húngaros ficaram putos da cara que a Sérvia deixou uma coisa dessas acontecer e declararam guerra. A Rússia tinha suas afeições pela Sérvia e declarou guerra ao Império Austro-Húngaro. A Alemanha, que bebia cerveja com os austríacos, bateu o copo na mesa e foi defendê-los. E assim foi, um país por vez entrando no rolê.

Não haviam grandes motivações. Não havia um grande poder centralizado como vilão. Todos os soldados eram inocentes; a guerra em si era a grande vilã.

Aí é que está o grande erro do uso da Primeira Guerra na cultura pop recente: Não é possível tomar lados. Quando Diana Prince invade as fronteiras germânicas e sai matando soldados, ela está matando humanos tão inocentes quanto aqueles que lutam do lado dela. Quando Battlefield 1 não permite que o jogador atue como um soldado turco ou austríaco em seu single-player, ele está tomando lados no heroísmo.

Por isso que as obras que melhor tratam a Primeira Guerra são menos sobre os confrontos e mais sobre as circunstâncias: a guerra é a grande vilã. É assim na antiga Paths of Glory ou na mais recente Un long dimanche de fiançailles (de Jean-Pierre Jeunet). A Primeira Guerra é unicamente o plano de fundo em torno da qual a desgraça de seus personagens ocorre.

Seria mais ou menos da mesma forma como a cultura pop trata a Guerra do Vietnã. Frank Castle, herói gerado na Guerra do Vietnã é menos maniqueísta e mais polêmico e dualista. Soa inaceitável um herói moralmente bom sair por aí matando vietnamitas.

Na Primeira Guerra, e especialmente nas conseqüêncas de sua conclusão, a Alemanha apanhou mais do que o Lula em bate-cabeça do show do Lobão. Parece, porém, que as atrocidades cometidas na Segunda Guerra foram tão intensas que causam uma culpa retroativa, e todo mundo aceita tranqüilamente encará-los como vilões de uma guerra sem heróis.

Sou totalmente a favor de um uso mais intenso da Primeira Guerra na cultura pop. Acho maravilhoso recuar a origem da Mulher Maravilha em duas décadas e colocar ela no meio da (como o próprio filme destaca) “guerra para acabar com todas as guerras”. Bate muito bem de acordo com a premissa de que todas as guerras são ruins. Aliás, ao contrário do que pode parecer por este texto, eu simplesmente adorei o filme da Mulher Maravilha – e ao fim da sessão eu estava perdidamente apaixonado pela Gal Gadot, e esse amor platônico foi o sentimento mais pueril que eu tive no cinema ultimamente.

Mas, na minha opinião extremamente chata, separar os combatentes em “lado bom/lado mau” é simplista e historicamente inacurado.

Afinal, um dos melhores motivos em localizar a história durante a Primeira Guerra é poder usar um roteiro com mais tons de cinza do que a briga de lados bem definidos que tratamos a Segunda Guerra. Numa época tão polarizada, isso sempre cai bem.