O Relógio

Texto originalmente publicado no Medium, em novembro de 2018 na ocasião do primeiro fechamento do bar.
Republicado agora, já que a casa reabriu e fechou de novo.

Encerrou as atividades em outubro de 2018 novembro de 2019 o The Clock Rock Bar.

foda-se, vou ficar descalço na balada, dizia a gente várias vezes.

Das 465 amizades atualmente ativas no meu Facebook, 33% podem ser agrupados na categoria “The Clock”. São 152 vidas que se interligam a mim por conta de um bar em Perdizes. Algumas dessas pessoas são estimadíssimos amigos, que eu amo de todo meu coração e confio cegamente. Alguns são pessoas que eu considero meus melhores amigos e que mesmo com a distância das idas e vindas de minha vida, sempre me senti intimamente próximo. A imensa maioria desses são amigos que eu não tenho dúvida que manterei para sempre.

Eu não vou tentar explicar aos outros 2/3 dos meus contatos de Feicebuqui o que esse bar representava para mim. Palavras não serão jamais suficientes, e só quem lá frequentava pode entender esse sentimento de vazio que nos inunda no momento. Eu prefiro aproveitar a situação para refletir um pouco exatamente no vazio de um evento irremediável.

Todos já sentimos isso. No fim de uma faculdade, na mudança de emprego, numa mudança de cidade, numa eliminação de MasterChef porque você trocou açúcar por sal e a Paola Carossella tá até agora bebendo água, porra, como você pode estragar tudo desse jeito, ainda vai ter que conversar com a Ana Paula Padrão ali na saída e o brasil todo vai ver, que situação chata… Enfim, sempre que um ciclo se fecha de forma óbvia, com um milestone bem definido, o ser humaninho aproveita para fazer uma reflexão disso tudo que aconteceu aí.

A vida é feita de ciclos e é a ordem natural deles se encerrarem. O normal é que comecemos e terminemos inúmeros relacionamentos, alguns inclusive acabando de forma trágica e/ou belicosa. Até casamentos que são baseados na idéia que durarão pra sempre (em sua maioria, evidentemente — oi, Gretchen! oi, Fábio Júnior) têm, de forma cada vez mais freqüente, atingido um momento em que não dá mais, monotonia, problemas financeiros, meio pote de iogurte abandonado na sala e ela comeu de novo todo o chocolate do sorvete napolitano, mas que merda, porque não compra logo de chocolate? agora vou ter que comer sorvete de creme e morango, como se fosse uma criança de 5 anos em uma festa mal planejada de um amiguinho do pré que você nem é assim tão próximo… Casamentos chegam ao fim pelos mais variados motivos e se soa trágico que eu esteja comparando o fechamento de um bar ao fim de um matrimônio, eu quero dizer que eu sei que é exagerado, afinal a maioria dos matrimônios não tinham esse tanto de amor que eu tinha pelo The Clock, saco, vocês não entenderiam.

Ah, mas sério que eu estou de novo usando frases de uma sitcom de televisão para tentar explicar meus sentimentos? Preciso ler mais, sair da frente da TV.

É também da natureza humana essa idéia de que as coisas vão durar para sempre. Mesmo que nossas pretensões não sejam permanecer por muito tempo naquele trabalho ou morar por anos a fio naquele apartamento meio mofado, quando chegar a hora de se mudar de um ou de outro, vai bater aquela sensação de vazio, aquela noite que você deita na cama e fica olhando para o teto, revivendo o quanto você mudou nessa fase tal da sua vida. E se isso já é verdade para conceitos que temos como temporários, o vazio nos atinge muito mais nas coisas que julgamos que durariam para sempre.

Como naquela BestFriendForever de colégio se mudou para a Austrália, e vocês pararam de se falar de uma forma tão natural e gradual que até soaria estranho mandar um “oi, sumida”, ela nem deve lembrar de você. Amizades nascem, se fortalecem, enfraquecem e morrem de forma simplória, como siriris no começo da primavera, que você não percebe eles chegarem e nem percebe eles sumirem, de forma antônima aos sucessos do Latino que simplesmente explodem, grudam por umas semanas e se vão, rápidos como tempestades de verão. Manter amigos é um negócio difícil e requer dedicação de muitos os lados, então quando eu disse ali em cima que não tinha dúvidas que a maioria do pessoal do Clock eu manteria pra sempre, eu meio que tô me enganando, eu quero ter a companhia de todos pra toda a eternidade, mas vou deixar a vida escolher quem vai e a que momento. A vida é mais próxima do final do episódio de Chaves em Acapulco do que uma série eterna de maratonas sequenciais de Friends; que conclusão mais depressiva pra se chegar agora, desculpa, amo todos vocês e vamos ser amigos pra sempre, como os três tenores Plácido Domingo, José Carrera e Luciano Pavarotti. Prefiro viver com essa idéia. Todos preferimos, eu sei.

Porém, nada dura para sempre. Talvez seja a forma como eu levo a vida, morando de um a três anos em cada lugar e simplesmente jogando tudo para o alto e foda-se, vou começar do zero lá longe por motivo nenhum a não ser por eu ser um imbecil; mas eu consigo ver as coisas como temporárias e passageiras. Cada dia de verão em Berlim me soava como um dos últimos dias de verão de Berlim, primeiro porque Berlim não tem tanto verão assim, mas também porque eu não sabia quanto tempo eu ia levar pra ficar louco e tomar de novo a decisão estúpida de largar tudo e me mudar. Há um tempo que eu tento enxergar nos pequenos prazeres como coisas finitas: happy hours com os amigos, viagens, almoços em turma, noites de board game, idas ao Clock. Oras, colocando em perspectiva que a vida chega ao fim, todas essas são efetivamente atividades com um número finito de ocorrências, eu só vou ter uns 75 carnavais na vida e quase metade deles já se passaram. Só me restam umas 10 Copas do mundo pra assistir, sério que eu não vou em nenhuma? Saber enxergar a vida como uma série finita e curta de eventos é trágico, mas necessário, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista filosófico.

Por exemplo, as excelentes noites de casa lotada que o The Clock teve desde que anunciou seu fechamento. Em cada um dos amantes daquela casa bateu o desespero de perceber que o número finito de vezes que ela poderia ser frequentada era cada vez menor. De repente cada final de semana se tornou uma das últimas oportunidades que teríamos de ir lá dançar e beber, sendo que cada final de semana sempre foi uma das últimas opotunidades que teríamos de ir lá dançar e beber. A realização desse fato, com uma data de término estabelecida para o triste fechamento trouxe em todos a sensação de urgência que deveríamos levar para a vida.

A vida é muito curta, bicho. Temos mesmo que viajar mesmo pra Disney, temos que tocar nossos projetos, seguir nossos sonhos, desistir das aulas de alemão, afinal você não vai aprender mesmo e não vai precisar de muito mais do que ein bier, bitte! danke schön!. Nem sempre somos premiados com um comunicado de cortar o coração nos passando a data final de uma era de nossas vidas.


No meu momento de reflexão pessoal sobre os dez anos que eu frequentei esse lugar, a única conclusão possível é que eu não poderia ter terminado com um saldo mais positivo. É verdade que em 10 anos de vida, espera-se que o cidadão normal evolua e cresça como pessoa, e tendo morado em 5 países diferentes, vários empregos, aberto algumas empresas, rolado em algumas Oktoberfests e atrás de alguns queijos, enfim, atividades que moldam naturalmente o caráter do cidadão; mas eu olho para o pequeno idiota que entrou naquele bar pela primeira vez em fevereiro de 2010 (não foi essa a primeira vez, a primeira vez foi em 2006, mas foi só 2010 que eu comecei a fazer aulinhas de dança e frequentar de vez a casa) e, comparativamente com o grande idiota que saiu daquele bar pela última vez em outubro de 2018 novembro de 2019, é possível ver um imenso abismo de diferença. E, mesmo tendo passado por inúmeras experiências de vida, eu sou ousado e pedante o suficiente para atribuir grande parte do meu amadurecimento (cof!cof!) e mudança pessoal ao The Clock Rock Bar sim.

um lugar para colocar em prática péssimas idéias

Essa ligação de crescimento pessoal com a casa não é nem de perto uma exceção e/ou exclusividade minha. “Qual tragédia te trouxe ao Clock?” era, afinal, uma frase não absurda de se dizer. Visto que um dos fundadores da casa era formado psicólogo, eu enxergava aquilo tudo como um grande experimento dele, sendo os clientes ratinhos de laboratório com uma míriade completíssima de distúrbios mentais e psiquiátricos: síndrome do pânico, depressão, insônia, alcoolismo, auto-depreciação, timidez extrema… Não são poucas as pessoas que viam nas noites de sexta e sábado uma fuga dos infinitos problemas que afetavam a vida. Não é raro alguém que refira-se ao The Clock como tratamento alternativo (e altamente eficaz) para suas mazelas psicológica pessoais. Encontrava-se na noite Clockiana ouvidos parceiros, ombros amigos, copos de coletivo divididos. A rotatividade do lugar já era algo marcante: tinha todo o ciclo da pessoa ir, se encantar, voltar, aprender a dançar, freqüentar para beber e treinar, se divertir, enjoar, ficar com preguiça sequencial, voltar, perceber que a turma conhecida que frequentava diminuiu sendo substituída por uma turma nova no começo do ciclo natural deles, dizer que o Clock não é mais o mesmo, e parar de frequentar com assiduidade, voltando à casa somente em ocasiões especiais. Mesmo assim, para várias pessoas, o lugar ainda era aquela segunda casa, o bar o qual você não precisaria marcar com os amigos de ir, era só ir que os amigos estariam lá. Mesmo que os clientes de um ou dois anos ainda estivessem no meio de seu ciclo, ainda havia uma gama de clientes de 10 ou mais anos que tinham essa relação toda bonita com o bar, aquele ambiente bonito e familiar, tipo os Friends com o Central Perk ou os agentes da polícia federal com os escritórios da Odebrecht, era tocante.

Agora, a Grande Era The Clockiana se encerra na vida dessas pessoas. Não só dessas, mas também de diversas outras que nem iam mais no bar, mas agora vão passar definitivamente de fase, aceitar que são idosos de alma sem pique de fugir do Netflix ou buscar uma outra diversão noturna na eternamente pulsante São Paulo (se estiverem procurando outro lugar como o Clock, não acharão).

A vida segue e o fim do Clock é só… bom, é só mais um fim, dentre tantos outros que ainda havemos de enfrentar em nossas vidas. Até morrermos, e tornarmos nós mesmos um fim para outrem. Uau. Profundo. Parece até episódio de Bojack Horseman.

A mim nada resta a não ser continuar a tocar a vida: manter contato com a galera, indo sei lá, no Vila Country ou Canto da Ema… Continuar tentando dar certo escrevendo baboseira na internet, seja seriamente com meus blogs de verdade ou só tirando pensamentos conflitantes da minha cabeça, como este texto aqui… Criando mais alguma empresa que dê certo… Estudando desenho, programação… No fundo, continuar estuando alemão também, sei que vou continuar tentando inutilmente nisso daí.

E sempre olhar pra trás e pra esse período com todo o carinho que ele merece. Com essa mistura de alegria com tristeza que a nostalgia nos trás e só “Inside Out” pode nos fazer entender.

Muito obrigado, The Clock Rock Bar.

Pelos melhores 10 anos da minha vida, muito obrigado.

uma galera feliz, umas cenas meio borradas.. é assim que eu vou lembrar do Clock