A Terra das Coisas Perdidas

Aquele óculos escuros chegou (ou seria “aqueles óculos escuros chegaram”?) numa grande porta de madeira com uma maçaneta central dourada, onde foi atendido por um velho senhor trajando um paletó azul, uma camisa rosa e calça jeans. O senhor carregava uma bengala de madeira bem gasta e estendeu alegremente os braços para receber o óculos.

– Bem vindo à fantástica terra das coisas perdidas pelo Paulo!

Terra das coisas perdidas
"Deixei minhas chaves por aqui em algum lugar..."

O óculos olhou (ou seria “os óculos olharam”? Ao inferno com a correta conjugação do plural! – fique satisfeito com minha singularidade) de forma encantada para aquela porta e para aquele senhor alegre, de barba rala e visivelmente repetindo um texto já decorado e que deve ter sido repetido milhares de vezes:

– Vejo que, se você chegou aqui, é porque o Paulo lhe perdeu! Por favor, entre! Você será muito bem tratado juntamente com milhares de outras coisas renegadas à despretensiosa distração de um rapaz esquecido. Esse é seu novo lar.

O óculos – um Ray Ban, modelo esportivo, que nem do Paulo era! – seguiu o velho que abriu a porta e entrou em um amplo salão redondo e bem iluminado. O centro do salão tinha o chão composto de um mosaico de ladrilhos formando um desenho de uma inconformada face de Paulo – olhos cerrados e testa franzida, retratando aquele exato momento que o rapaz percebe que perdeu algo. O que faz sentido, afinal, tudo ali havia sido perdido por ele.

– Veja todo esse material! Saiba que você definitivamente não está sozinho – disse o velho enquanto apontava para diversos corredores de altas estantes que ficavam imediatamente à esquerda de quem entrava na porta. As estantes estavam repletas de milhares de materiais escolares que já foram perdidos por Paulo. Haviam lápis ainda nem apontados e canetas com a carga cheia. Sem contar diversas borrachas, estojos, réguas, alguns cadernos e algumas dezenas de revistas… Logo depois da estante, em um amplo cabide repousavam centenas de guarda-chuvas e algumas blusas velhas e infantis.

– O que é aquilo? – Perguntou o óculos, apontando para o outro lado, onde uma sala de vidro continha diversos servidores ligados por um emaranhado de cabos.

– Aquilo são os nosso servidores. São compostos de alguns petabytes de dados de informática perdidos pelo rapaz. Trabalhos de faculdade completos deletados por acidente, fotos, músicas e vídeos de HDs formatados devido a vírus… Documentos, e-mails, “Ctrl+Z”s que jamais voltarão…

Ao lado da sala, em um sofá marrom, uma garota ruiva se agarrava em uns fortes amassos com um rapaz estranho.

– Aquela ali – disse o velho percebendo o olhar do óculos – é a ex-namorada do Paulo.

– Sim… eu já sabia que ele a havia perdido… Mas porque ela está tão mal vestida? – Perguntou o óculos.

– Ela estava com frio e pegou emprestada a jaqueta Jeans favorita do Paulo, que ele perdeu recentemente numa balada.

– E esse cheiro?

– Ah sim! Não, o cheiro não é dela! Por Deus, Ray Ban! A menina é limpinha… o cheiro vem dali… – e o velho apontou para o outro lado da sala – Freqüentemente novo material entra naquele pote. São células nervosas, fatias estragadas de fígado, pele e demais pedaços outrora saudáveis do garoto e que ele perde a cada bebedeira. Vê aquela coisa tímida jogada ao lado do pote? É a virgindade dele. Sim… eu sei… todos ficam surpresos quando descobrem que ele já a perdeu. Do lado da virgindade, cabisbaixo você tem o bom-senso do Paulo. É um dos habitantes mais velhos daqui. Há muito tempo que foi perdido.

– E aquele cofre? – o óculos apontou o aro para uma pesada porta de metal com uma maçaneta giratória encrustrada na parede

– Ah… cuidado com aquela sala! Ali, espremidos em uma sala que já está pequena demais para o material estão todos os medos que o Paulo perdeu. Lá estão o medo de barata, o medo do escuro, o medo de montanha-russa, o medo de altura, o medo da morte, o medo de “O Iluminado”, entre outros!

– Puxa! Quer dizer que o cara perdeu o medo de tudo?

– Não seja estúpido. Ainda restam o medo de trens e o medo da Amy Winehouse.

– Porque alguém teria medo da Amy Winehouse?

– E porque alguém não teria?

O óculos franziu a armação metálica. Aquilo fazia sentido. O lugar parecia bem legal. Tinha bastante coisa pra fazer (principalmente para a ruiva, pelo que parecia)… Centenas de filmes e episódios aleatórios de novelas e séries que o Paulo perdeu. Além de uma hilária partida de futebol da final do campeonato da terceira série.

– E nada do que vem pra cá é recuperado? – perguntou o óculos.

– Dificilmente. Mas às vezes acontece. O respeito, por exemplo está toda hora entrando e saindo daqui.

O óculos olhou com carinho para seu novo lar. Nada de surpresas. Um final simples para uma história simples e sem graça. Se todas as coisas perdidas tivessem um final tão bom, não haveriam tantos fãs de “LOST” desapontados por aí.

Serei feliz o dia que o Google achar minhas chaves.